sexta-feira, 2 de julho de 2010

Morada das flores

O velho caminhou mais um pouco e se sentou. Ao que parecia o último esforço que havia feito tinha extenuado o pouco ânimo que lhe restara.

Com o olhar choroso, com a voz baixa e o corpo trêmulo ele fez a última tentativa com aquele jovem que se curvou sobre ele e lhe indagou sobre sua saúde e se ele estava bem.

Ele apressou-se a dizer que se chamava Eliziardo Pereira da Silva, que era agente funerário desde menino, que trabalhava com arrumação dos corpos que tinham passado desta vida para outra. Explicou, quase que didaticamente, sobre o começo da década de sessenta, sobre como os corpos eram lavados em grandes tinas.

Nesta época ele era operador de esguicho, pois o seu colega de trabalho sendo mais forte e mais velho segurava o morto e ele mandava água naquele ser prestes a retornar para a terra. Nas palavras dele, o bom do serviço é que ninguém reclamava da qualidade da limpeza, ninguém conferia e só queria livrar-se do fardo de enterrar o “presunto”.

Depois vieram as técnicas de tratamento de cadáveres e ele se aperfeiçoou em cada uma. Ele se tornou um excelente profissional, tanto que passou a ser “professor”. A sua sala de aula era no necrotério. As aulas eram teóricas e práticas ao mesmo tempo. Os alunos, ele confessou, no início já eram poucos e com o tempo sumiram. Segundo o velho agente, eles deveriam ter cursos mais interessantes para fazerem.

O idoso agente funerário afirmou que jamais teve medo de mortos. Ele encarava com naturalidade a grande justiça da vida. Ainda, outrora, rira gostosamente dos medos alheios, mas o episódio que lhe sucederá há pouco o colocou em pânico absoluto e o fez até mesmo chegar ao limite do juízo.

Contou o pobre senhor que pela manhã havia chegado dois corpos de ladrões, que morreram durante um roubo, que foi frustrado pela Polícia. Os ladrões eram iniciantes na prática de tomar o que era dos outros, bem como eram jovens e pertenciam a famílias abastadas. As mortes foram profundamente lamentadas na cidade e os pais dos defuntos pagaram uma boa soma para deixar aqueles meninos larápios com boa aparência no caixão.

Os corpos estavam com os rostos machucados, inclusive os ferimentos que causaram lhes a derrocada e o ingresso para o mundo dos mortos haviam sido feitos nas suas joviais faces.

O velho agente funerário começou a passar acetona no rosto de um, enquanto a máscara de látex do outro secava. Ele cantarolava baixo e nem pensava na triste cena que tinha em sua mesa de trabalho. Eis que ai o inesperado aconteceu.

Quando ele foi até o armário para buscar uma base mais consistente para colocar nos furos mais severos ele teve uma intuição estranha, em quase cinqüenta anos de profissão nunca tivera o sentimento do medo, mas agora neste momento isso aconteceu e ele sentiu medo. Um medo paralisante e em razão deste não conseguiu olhar para trás. Apenas saiu correndo deixando tudo como estava.

O Necrotério onde ele estava ficava em um cemitério, no fundo de uma rua de terra. Então, ele passou correndo pelo caminho, que era ladeado por túmulos velhos, novos, uns com flores e outros sem, buscava desesperadamente o portão de entrada. Chegando à rua o silêncio era pesado e ele não hesitou em continuar correndo até achar alguém que lhe pudesse prestar alguma ajuda.

Mas o impensável compareceu, o inexplicável se apresentou e mesmo ele não querendo acreditar nas imagens que via sucumbiu ao incontestável. O absurdo estava de fato neste instante triste da sua vida, que na sua mente era a de um pacato agente funerário.

Os dois corpos que até pouco tempo ele arrumava passaram correndo na sua frente, vestiam uniformes de coveiro, que com certeza haviam pegado no cemitério. Logo ali na esquina furtaram um carro que estava parado. Pegaram aquele veículo e zarparam.

O jovem que até agora ouvia atentamente a história do agente funerário em pleno surto, sentiu pena daquele senhor que deveria ter perto dos setenta anos. E de supetão o abraçou ternamente.

O moço colocou o velho delirante em um táxi que por ali passava e o acompanhou até o hospital mais próximo. Lá o velho chegou dormindo. Como era uma emergência ao chegar naquela unidade de saúde já trouxeram a maca. O jovem procurou no bolso do velho algum documento para fazer a ficha cadastral. Qual foi o seu susto, quando se deparou com uma certidão de casamento e com um atestado de óbito, os dois documentos estavam dobrados em quatro partes.

A certidão de casamento afirmava que no ano de 1925, no dia 10 de agosto Eliziardo Pereira da Silva casou-se Maura Conceição da Cruz.

O maior susto e a maios surpresa foi às informações do atestado de óbito, que era datado de 10 de agosto de 1950 e constava neste o nome de Eliziardo Pereira da Silva, que nos termos do atestado morrera de falência múltipla de órgãos.

O enfermeiro ao tentar achar a pressão arterial do velho constatou que não havia atividade naquele corpo. Aquele senhor estava morto.

O jovem sentiu-se desamparado e não compreendeu o que acabará de se passar. Ele pegou suas coisas e foi embora do hospital. Ele nem ficaria sabendo, mas a enfermeira chefe teria um grande problema algumas horas mais tarde, quando a funerária de plantão viesse a buscar o corpo do suposto óbito, pois o corpo misteriosamente havia sumido.

As pessoas que estavam trabalhando naquele dia jamais se esqueceriam do ocorrido. Após algum tempo a história começou a ser contada como lenda, mas de tempo em tempo, naquele hospital ouvia-se relatos parecidos. Até que um dia a Secretaria de Saúde Municipal resolveu fechar aquele local. Anos mais tarde o prédio seria demolido e algumas décadas depois seria uma praça pública, que ganharia o nome de Morada das flores.

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